Introdução: o caso que agitou o pós-Clássico
A rivalidade entre FC Porto e Benfica continua a fazer eco muito para lá das quatro linhas. Desta vez, o centro da polémica está numa queixa formal apresentada pelos dragões ao Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), contra Vangelis Pavlidis, alegando agressão a Gabri Veiga no último Clássico disputado a 5 de outubro.
Contudo, segundo informações apuradas e publicadas pelo jornal Record, a queixa azul e branca dificilmente terá seguimento. O motivo? O CD deverá aplicar a “Field Play Doctrine”, um princípio que protege as decisões tomadas em campo quando o árbitro observa e sanciona o lance em causa.
Esta situação abre um debate interessante sobre a coerência das decisões disciplinares, o papel dos relatórios de arbitragem e a eficácia das estratégias jurídicas dos clubes portugueses.
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O contexto da queixa do FC Porto
Após o Clássico, o FC Porto alegou que Pavlidis agrediu Gabri Veiga num lance de disputa de bola, exigindo que o avançado grego fosse alvo de um processo disciplinar adicional. Os azuis e brancos argumentaram que o movimento do jogador do Benfica teria colocado em causa a integridade física do médio espanhol, defendendo que o árbitro Miguel Nogueira não teria punido devidamente o gesto.
Inspirados num caso anterior — a queixa do Benfica contra Matheus Reis, do Sporting, na final da Taça de Portugal — os dragões tentaram utilizar o mesmo enquadramento jurídico para obter uma sanção retroativa. No entanto, há uma diferença crucial entre os dois casos: no Clássico, o árbitro assinalou falta, enquanto no jogo da final da Taça, Luís Godinho não viu a agressão a Belotti.
Essa diferença é determinante e, segundo fontes próximas do processo, enfraquece por completo a argumentação portista.
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“Field Play Doctrine”: o que é e por que anula a queixa
O conceito de Field Play Doctrine (ou Doutrina do Jogo de Campo) é fundamental no regulamento disciplinar da FPF. Na prática, significa que quando um árbitro observa, avalia e descreve um lance no seu relatório, a decisão é considerada encerrada no plano disciplinar, salvo erro grosseiro ou ausência de visão do lance.
Ou seja, se o árbitro viu o incidente e o descreveu no relatório oficial, não há espaço para nova punição, a menos que existam imagens que comprovem uma agressão clara e não assinalada.
No caso de Pavlidis, Miguel Nogueira mencionou a infração no relatório, o que automaticamente torna a queixa do Porto quase impossível de prosperar. O Conselho de Disciplina apenas poderá confirmar que o árbitro e a equipa de VAR — Bruno Esteves e Pedro Felisberto — cumpriram o protocolo previsto, sem qualquer negligência.
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A análise técnica do lance e as implicações disciplinares
De acordo com as imagens televisivas, o lance entre Pavlidis e Gabri Veiga ocorreu numa disputa intensa pelo meio-campo. O grego, ao tentar proteger a bola, acabou por acertar com o braço no adversário. O árbitro assinalou falta, mas não exibiu cartão.
Este tipo de contacto é frequentemente classificado como “movimento natural de jogo”, e não como agressão deliberada. Assim, o CD não encontrará base para aplicar um castigo adicional, uma vez que a intenção e o contexto do movimento não configuram violência gratuita.
No futebol moderno, onde cada jogada é dissecada em múltiplos ângulos, a fronteira entre agressividade e agressão tem sido uma das maiores fontes de polémica. No entanto, o regulamento é claro: se o árbitro viu e sancionou, o caso encerra-se.
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Comparação com outros casos recentes
O exemplo do caso Matheus Reis vs Belotti serve de referência para compreender a diferença de critérios. Na final da Taça, o árbitro Luís Godinho não viu o incidente, nem o relatou. Isso permitiu ao CD abrir um processo disciplinar após a partida, com base nas imagens.
Já no episódio Pavlidis–Veiga, a situação é inversa. O árbitro mencionou o contacto, e por isso, a queixa do FC Porto não tem suporte jurídico sólido.
Mesmo assim, o CD é obrigado a analisar formalmente o documento apresentado pelos portistas. O procedimento inclui ouvir o árbitro e a equipa de VAR antes de emitir uma decisão final. Contudo, tudo indica que o caso será arquivado.
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Opinião: o reflexo de um futebol judicializado
A tentativa do FC Porto de recorrer ao Conselho de Disciplina revela uma tendência cada vez mais visível no futebol português: a judicialização do jogo.
Em vez de se resolverem as questões no campo, os clubes procuram nas instâncias disciplinares uma forma de “equilibrar contas” ou pressionar rivais.
É legítimo que um clube defenda os seus jogadores, mas quando o recurso se baseia em interpretações forçadas de lances vistos e sancionados, o processo perde credibilidade.
Além disso, o uso recorrente destas queixas cria um clima de suspeição permanente e aumenta a tensão entre clubes, árbitros e federação. O futebol português precisa de maior estabilidade institucional, e isso passa por confiar nas decisões dos árbitros, ainda que nem sempre sejam perfeitas.
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O que esta decisão significa para Benfica e Porto
Se o Conselho de Disciplina arquivar a queixa, o Benfica ganha um pequeno “balão de oxigénio” num momento em que também estuda apresentar uma queixa contra Alan Varela, por uma entrada dura durante o mesmo jogo.
No entanto, o precedente da “Field Play Doctrine” aplica-se igualmente: se o árbitro viu o lance e o sancionou, dificilmente haverá punição posterior.
Para o FC Porto, o episódio reforça a perceção de isolamento nas instâncias disciplinares. O clube tem insistido que há uma diferença de critérios entre casos semelhantes, mas os fundamentos legais parecem contrariar essa leitura.
O desfecho, se confirmado, poderá ser usado como argumento por outras equipas em futuras disputas, consolidando a aplicação da doutrina que protege as decisões tomadas em campo.
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Conclusão: um caso encerrado antes de começar
A queixa do FC Porto contra Pavlidis parece ter nascido condenada à partida. A aplicação rigorosa da Field Play Doctrine e a presença do lance no relatório oficial do árbitro tornam praticamente inevitável o arquivamento.
Este episódio mostra como, no futebol português, a luta fora de campo continua tão acesa quanto dentro dele.
Mas também revela algo mais profundo: a necessidade de redefinir os limites entre justiça desportiva e pressão institucional, para que o jogo recupere o seu foco essencial — o espetáculo dentro das quatro linhas.
Enquanto isso, tanto Benfica como FC Porto seguirão atentos a cada decisão disciplinar, conscientes de que, em Portugal, um lance pode valer não só um golo… mas também um processo.
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